Falar de flor
"Uma flor nasceu na rua!/Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do
tráfego./Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o
asfalto./Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma
flor nasceu."
Após o paralisante "nada a declarar" de líderes mundiais na Rio+20, é
preciso muita poesia para manter a persistência que --como diz o
apóstolo-- produz a esperança. E então a acidez singela da poesia de
Drummond veio em socorro de minha fome poética. O genial poeta itabirano
celebra o nascimento de uma flor na fresta do asfalto, superando a
indiferença humana e o pesado invólucro da civilização.
Assim me sinto ao lembrar os intensos dias em que organizações civis e
milhares de pessoas manifestaram, no Rio, sua indignada exigência de
atenção perante os dirigentes de Estado reunidos na conferência da ONU.
Gente de todos os continentes, de jovens ativistas de grandes cidades a
líderes de pequenas comunidades indígenas, dando demonstrações
criativas, como a "Marcha a Ré" que parou o Rio, de que o mundo quer
viver.
Infelizmente, a conferência oficial não ouviu isso. E o poema de
Drummond me revela sua dimensão profética, que, feitas as contas, pode
ser válida até a Rio+40 se predominar a desdita ambiental das
necessidades presentes: "Depois de quarenta anos,/e nenhum problema
resolvido, sequer colocado./Nenhuma carta escrita nem recebida./Todos os
homens voltam pra casa".
Mas o desafio dos que voltam para casa, décadas após décadas de "Rio+"
que se somam sem subtrair os problemas, é extrair a "esperança mínima"
de que fala o poeta, para não cair no vazio da queixa que paralisa até
os jovens, cuja natureza é andar: Andar à frente,/andar ao lado,/de
marcha a ré e atravessado,/enveredando pelo futuro,/no chão dos rastros
deixados.
Desde a retomada da democracia vemos o florescimento de movimentos sociais antes abafados pelo autoritarismo, com um ideário amplo que antecipava o novo milênio. Essa é a flor que agora irrompe no asfalto. Sua delicadeza denuncia as rachaduras do sistema que já não consegue impedi-la de brotar.
Chegou a hora de a sociedade tomar iniciativas próprias, buscar
autonomia e independência. Sem recusar nem desconhecer a política e o
Estado, ir além deles e fazer mudanças na vida com a noção ampla de um
novo contrato natural --pois inclui os demais seres vivos e
ecossistemas--, não só um contrato social. Conseguiremos? Estamos
maduros para o que o tempo nos exige?
Aqui se revela a necessidade da utopia, que ultrapassa as ilusões
limitantes do pragmatismo e reafirma a força da esperança, sem a qual
não há futuro. No fim das contas --Drummond sabia--, é a poesia que faz
brotar a flor.
Marina Silva, ex-senadora, foi ministra do Meio Ambiente no
governo Lula e candidata ao Planalto em 2010. Escreve às sextas na
versão impressa da Página A2.
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