Summer World – a season of bounty, do entomólogo Bernd Heinrich, é um
desses livros sobre assuntos universais em detalhes minúsculos que só os
biólogos são capazes de fazer. O problema é que Heinrich, professor
emérito da Universidade do Vermont, está longe de ser um biólogo como
outro qualquer.
Para começo de conversa, ele mesmo ilustra copiosamente suas páginas,
não só com fotografias documentais, mas sobretudo com desenhos a mão
livre, feitos com traços precisos e verossímeis, sem perder o lirismo de
quem está vendo as coisas pela primeira vez, o que lhes dá um certo
grau de parentesco com as figuras que povoam as páginas de histórias
infantís. E isso mesmo quando retrata a autópsia de um pássaro abatido
no choque com as vidraças de sua casa.
Ele é também um maratonista de fôlego. E bota fôlego nisso. Quase
quarentão, perdeu por meros três segundos a vaga na equipe dos Estados
Unidos para os jogos olímpicos de 1980. De lá para cá, veio acumulando
títulos e recordes de longa distância, correndo 100 quilômetros em pouco
mais de sete horas e 100 milhas em doze horas. De quebra, escreveu
sobre as maratonas para a seção de esportes do jornal The New York
Times. E o artigo foi premiado.
Pudera. Ele fez um livro de História Natural sobre os impulsos
biológicos que na noite dos tempos produziran homens alcançar antílopes e
outras criaturas prodigiosamente lépidas, graças à soma de persistência
com vontade de vencer. Tudo em que ele bota o olho fica interessante –
sejam rãs, moscas, besouros, vespas, aranhas, a disputa acirrada entre
insetos pelo espólio de corpos em decomposição ou o padrão metódico com
que os pica-paus de peito amarelo picotam, ano após ano, a casca branca
das bétulas, para lhes sugar a seiva açucarada.Estudando mamangás,
demonstrou em outro livro que essas abelhas corpulentas poupam energias
com o tino de verdadeiros economistas, para se manter mais quentes que o
ar à sua volta. E, futricando a vida social dos corvos, provou que eles
raciocinam e fazem escolhas conscientes.
|
Henrich, ainda por cima, escreve com a desenvoltura de quem acha a coisa
mais natural do mundo pular, em poucas linhas, de esquemas cosmológicos
sobre a inclinação do eixo terrestre que aquece o hemisfério norte,
virando-os três meses por ano para o lado do sol, para uma citação de
“Here comes the sun”, de George Harrison – o estribilho completo, com o
“da-da-di-da-da” e tudo. Seu novo livro, este “Mundo do Verão”, mal
saído do prelo nos Estados Unidos, portanto ainda longe da língua
portuguesa, é exatamente o que diz o título: o mundo visto do fundo de
seu quintal, nas florestas do Maine, entre os verões de 2005 e 2009, na
estação em que animais e plantas aproveitam o maná de fótons que cai do
céu para crescer e multiplicar-se.
Embora as explorações de novos continentes no século 19 tenha associado
para sempre a imagem dos naturalistas as grandes viagens exploratórias
pelos confins mais exóticos do planeta, a curiosidade científica que
Henrich aplica a criaturas e lugares supostamente banais tem
antepassados ilustres. Foi assim, literalmente nos jardins provençais de
sua casa no sul da França, que nasceram no século XIX os livros de
Jacques Henri Fabre, o padroeiro dos estudos sistemáticos da vida íntima
de insetos. O próprio Charles Darwin não passou o resto da vida, como
parece, ruminando os troféus de seus cinco anos de viagem a bordo do
Beagle. Seu último livro trata da influência das minhocas na paisagem
inglesa. É uma típica – e fascinante – produção caseira.
Mas Heinrich tem, a seu favor, um pendor à primeira vista contraditório
para olhar para perto e enxergar longe. Só um fundista como ele para
contar, como aventura épica, a migração do
Archilochus colubris.
O beija-flor do papo rubi, genuíno cidadão dos trópicos, uma vez por
ano desembarca nos bosques norte-americanos, para acasalar-se e criar
filhotes. O macho dessa espécie pesa cerca de três gramas. Bate as asas
até 60 vezes por segundo. E, ao migrar, atravessa de ida e volta o golfo
do México, voando sobre quase mil quilômetros de água a 55 quilômetros
por hora. São, portanto, em velocidade de cruzeiro, 17 horas sem
reabastecer, costeando o limite da inanição. Eis uma narrativa de viagem
para Amyr Klink nenhum botar defeito.
Com a mesma ligeireza, Henrich transita entre decomposição de um peru
selvagem caçado por coiotes na vizinhança de sua casa para a
correspondência com um ex-aluno que, desenganado pelos médicos,
escreveu-lhe solicitando o favor de deixar seu corpo apodrecer ao
relento nas terras do professor. Segundo explica, aos “cuidados de
moscas, besouros” e outros “celebrantes da renovação”, capazes de
conduzi-lo à única forma de imortalidade em que acredita – a do
reaproveitamento natural das fontes de vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário