Texto: Cássia Candra
Foto: Gildo Lima
Ao anunciar para a próxima temporada a devolução ao mar da tartaruga
de número 13 milhões, os oceanógrafos Guy Marcovaldi, 58, e Maria Ângela
(Neca) Marcovaldi, 54, fundadores do Projeto Tamar, rebobinam o filme
com imagens em preto e branco de um grupo de jovens formandos da
Faculdade de Oceanografia da Universidade Federal de Rio Grande fazendo
os primeiros movimentos para proteger e recuperar as populações das
cinco espécies de tartaruga-marinha que ocorrem no Brasil. Em 1980,
esses animais pré-históricos já integravam a lista das espécies em
extinção e ainda não havia registro de qualquer trabalho de conservação
marinha no País. Guy e Neca tinham vinte e poucos anos e não faziam
ideia de que iriam ser reconhecidos como dois dos 50 heróis do planeta,
pela revista Time, ao sustentarem a fundação de um dos mais
bem-sucedidos projetos ecológicos do mundo. Três décadas depois, o Tamar
– abreviatura para tartarugas-marinhas – reúne parceiros de peso e
referenda um patrimônio importante mantido por uma senhora estrutura: a
Fundação Pró-Tamar, encarregada da sustentação econômica do projeto; e o
internacionalmente reputado Centro Brasileiro de Proteção e Pesquisa
das Tartarugas-Marinhas, que cuida da parte científica. Há 32 anos Guy e
Neca vivem em Praia do Forte, principal base nacional de proteção das
tartarugas-marinhas. Ele se tornou coordenador nacional do projeto e ela
presidente da fundação. O sonho virou uma inovadora empreitada de
sucesso traduzida em números grandes que envolvem o trabalho de 1.300
pessoas em 23 bases instaladas em nove Estados voltadas para ações que
resultam na proteção anual de 22 mil ninhos de tartarugas. Ganhador de
prêmios importantes, como o J. Paul Getty – o Nobel do Meio Ambiente –, o
projeto que mudou a relação das pessoas com as tartarugas parece não
arrefecer diante de tempestades, como a que a Fundação Pró-Tamar
enfrenta desde 2005, investigada por suspeita de improbidade
administrativa.
Quais os números conquistados pelo Tamar nesses 32 anos?
Neca – Este ano, vamos anunciar 13 milhões de
filhotes nascidos sob a proteção do Tamar. São 22 mil ninhos protegidos
por ano, das cinco espécies de tartaruga, nas áreas de reprodução.
Monitoramos 1.100 km de praia distribuídos em 23 bases em nove estados, e
há ainda em torno de 1.300 pessoas que fazem parte da operação do
Projeto Tamar com emprego direto e indireto.
Guy – Na próxima temporada, vamos festejar 15 milhões de visitantes.
Como vocês avaliam o patrimônio construído pelo Tamar?
Neca – É um patrimônio de todos. Muitas vezes, as
pessoas esquecem que o Tamar é um projeto para os nossos filhos e netos,
porque as tartarugas são recursos que estão há 150 milhões de anos no
mundo. Não são de ninguém, especificamente, mas de todos. Então, o que
avaliamos é que, em relação a um início de recuperação das populações, a
uma melhora de conscientização das pessoas, a um entendimento maior, e
maior respeito, com as tartarugas-marinhas, 32 anos ainda é muito pouco.
Na vida de uma tartaruga-marinha, 30 anos é só uma primeira geração.
Esse patrimônio, para sobreviver, vai precisar de muitos outros 30 anos.
O que ameaça as tartarugas hoje?
Neca – Agora, temos outros problemas. Tem a pesca
desordenada, que aumentou muito (as tartarugas são capturadas
incidentalmente e morrem); há redes demais na praia; tem muito
desenvolvimento no litoral, que é uma coisa fácil de conciliar, desde
que os empreendedores e as pessoas tenham consciência de que estão em
uma área em que os dois lados têm que ceder. A última coisa, que ainda
não se sabe como vai funcionar, é o aquecimento global.
Essas preocupações estão no foco do Tamar agora?
Guy – Sim. Mas eu gostaria de voltar àquela questão
do patrimônio. Por trás das tartarugas existem pessoas. Quando chegamos
aqui, encontramos os pais, seus filhos cresceram e eles viraram avós. Em
32 anos, passaram duas gerações humanas. O Tamar foi feito para
proteger e pesquisar as tartarugas, mas tivemos que mudar a cabeça das
pessoas.
O patrimônio seria essa transformação?
Guy – Transformação e educação. Mudou a cabeça das pessoas.
Neca – A transformação e a flexibilidade de se
adaptar as coisas que vão acontecendo. O cenário há 32 anos era
totalmente diferente. Então, fizemos um trabalho para resolver um
problema que parcialmente foi resolvido (a coleta dos ovos e matança das
fêmeas), e, depois disso, passaram a acontecer outras coisas, que estão
ligadas à ocupação das praias, ao desenvolvimento.
Guy – No jargão da biologia, nós dizemos ‘uso não
letal’. Antigamente o uso da tartaruga era letal, a população matava
para viver dela. Hoje, as pessoas continuam vivendo da tartaruga, mas
não precisam matar. Usam a imagem dela: o emprego que ela gera, a creche
que ela consegue patrocinar…
Tartaruga vale mais viva que morta.
Guy – Essa é a tradução de ‘uso não letal’. O cenário mudou.
Neca – Além de ter mudado tudo, acho que, com o
próprio aumento da comunicação no mundo, e com algumas tecnologias mais
novas, nós (pessoas que trabalham com tartaruga no mundo) começamos a
entender mais do ciclo de vida delas. Antigamente, não sabíamos quais
eram as espécies que ocorriam no Brasil, qual o período de desova e as
principais ameaças, não tínhamos nenhuma informação. E hoje, além dessas
transformações, sobre as quais estávamos falando, tem um acúmulo de
conhecimento.
O que levou o nome do Tamar para o mundo?
Neca – O diferencial do Tamar é que, enquanto a
maioria dos programas do mundo, na época em que começamos, tratava só de
pesquisa, o Tamar já estava fazendo educação ambiental e inclusão
social. O Tamar foi superinovador na relação com as comunidades. E hoje,
também, porque nosso banco de dados da parte de pesquisa é um dos
poucos programas do mundo que têm essa extensão com os dados
padronizados coletados com qualidade da mesma forma para que se possa
fazer análise comparativa.
Que chega a 13 milhões de tartarugas.
Neca – É, resultado comprovado.
Como funciona a organização?
Guy – O Projeto Tamar é uma fusão do Centro Tamar
(Centro Brasileiro de Proteção e Pesquisa das Tartarugas-Marinhas) com a
Fundação Pró-Tamar. O Centro Tamar é vinculado ao Instituto Chico
Mendes da Biodiversidade – ICMBio, órgão do Ministério do Meio Ambiente.
O governo, junto com a fundação, que é uma entidade privada sem fins
lucrativos, fez uma cooperação que é o Projeto Tamar. O projeto é tocado
de forma integrada.
Os recursos vêm daí?
Neca – É, das duas fontes.
Em abril, veio à tona a informação de que há um processo na
Justiça Federal, desde 2005, contra a Fundação Pró-Tamar. A ONG
responsável pela captação de recursos para a sustentação econômica do
Projeto Tamar estaria sendo investigada por suspeita de irregularidades
na concessão do título de entidade de assistência social com objetivo de
obter isenção de impostos. Qual a opinião de vocês a respeito?
Neca – Esse processo foi indeferido pelo juiz duas
vezes. Não procede. Acho que todas as nossas atividades estão aí para
dizer quem somos.
Vocês tinham vinte e poucos anos quando fizeram aquela foto da tartaruga morta cheia de ovos…
Neca – Foi no Atol das Rocas.
Até que ponto aquela ousadia ainda os move?
Neca – Ainda precisamos dela, porque a ousadia é
diretamente proporcional aos problemas e desafios que a gente tem que
enfrentar. As pessoas são a solução, mas também o maior problema. Então,
você tem que ter muito equilíbrio entre esses dois extremos. O Tamar
não existiria se não tivesse a adesão das pessoas, se não tivesse
naquela época, intuitivamente, um mote, antes de se falar em educação
ambiental e sustentabilidade, antes de se ter qualquer modelo teórico.
Nós entendemos que a única forma de conseguir parar a coleta de ovos e a
matança era fazer com que essas pessoas tivessem alguma alternativa.
Isso continua acontecendo de outras formas. A gente hoje tem que
trabalhar conciliando o desenvolvimento do litoral com o que é preciso
para as tartarugas não se prejudicarem.
Como o desenvolvimento prejudica?
Guy – O principal problema das tartarugas-marinhas,
nas praias, são as luzes artificiais. Para as tartarugas é letal, porque
elas se orientam pela luz. Não conseguem encontrar o mar e acabam por
morrer. Isso era uma coisa pontual, porque antes era uma vilazinha, mas,
hoje, a população de tartarugas aumentou umas dez vezes, e as luzes,
cem.
Neca – A ocupação gera impacto na praia. A população humana cresceu e a ocupação aumentou.
Guy – A distribuição de energia elétrica também cresceu muito.
Vocês estão aí com novos desafios.
Guy – É, mas tem umas coisas positivas. O governo da
Bahia, há alguns anos, fez uma lei estadual proibindo iluminação de
grande potência na praia. A lei, nos licenciamentos, é válida, os
empreendimentos obedecem, mas as pessoas acham que isso é invenção de
biólogo maluco.
Neca – Tem ainda legislação proibindo quadriciclos em área de desova.
E como o Tamar está lidando com isso?
Neca – Com educação, conscientização. É comprovar
que isso acontece. Agora estamos com esses personagens, A Galera da
Praia, falando sobre a luz. São várias formas de atingir o público: com
ludicidade, por meio de uma palestra formal, indo às escolas, tentando
atingir o maior número de pessoas possível. Você tem que, de alguma
forma, aproximar as pessoas do problema. Uma coisa importante que
protege as tartarugas no mundo é que todas as tartarugas-marinhas estão
listadas como espécies ameaçadas de extinção. Mesmo que tenha melhorado a
situação, elas não saíram da lista.
Qual foi a primeira lei?
Guy – A primeira lei dizia que era proibido matar e
pegar ovo de tartaruga desovando. Quando começamos, estava sendo
implantada e foi validada. Em seguida veio uma proteção mais dura,
porque as tartarugas foram colocadas na lista dos animais em extinção.
Neca – Mas não adiantava ter leis se os pescadores não sabiam ler e não tinha ninguém para ensinar o que era aquilo.
Guy – Eles já sabiam que pegar ovo e matar tartaruga
era proibido, mas nós propomos que ao invés de vendê-los no mercado
eles os entregariam ao Tamar. Nós oferecemos carteiras de trabalho
assinadas às lideranças dos pescadores.
Foi a ação mais importante do Tamar?
Guy – Foi um divisor de águas.
Neca – E como a gente sempre esteve muito numa
frente de ação, tudo isso foi intuitivo. Não existia modelo teórico.
Quando começamos a vender as camisetas do Tamar, algumas pessoas diziam
que não era um projeto sério. E hoje é a nossa principal fonte de
sustentação, que, aliás, não é nossa. Toda essa renda retorna para a
própria comunidade. O Tamar não gera lucro. O que seria lucro numa
empresa vai para ação de conservação que também emprega pessoas. E as
camisetas como valor agregado trazem a mensagem de conservação e
sensibilizam as pessoas nos grandes centros.
Quais atividades o Tamar realiza hoje?
Neca – Tem várias linhas de ação: monitoramento e
pesquisa na áreas de reprodução, que são as praias; monitoramento e
pesquisa nas áreas marinhas, que estão ligadas tanto à pesca quanto a
algumas áreas de alimentação e repouso nos corredores migratórios; ações
de educação ambiental e inclusão social; e ações dirigidas para
diminuição da incidência da captura incidental na pesca. São as linhas
básicas.
Como as tartarugas impactaram na vida de vocês?
Guy – A gente terminou a faculdade e começou a proteger as tartarugas. Nossa vida mudou quando fomos para a Praia do Forte.
Neca – O alicerce do Tamar foi comprovar para as
pessoas dos lugares onde havia o problema que não era um bando de gente
de outro lugar dando as regras e indo embora. Se não convivêssemos, não
teríamos criado essa estrutura.
Guy – Os pescadores viram os nossos filhos nascerem e crescerem nesses lugares.
Neca – Não é fácil morar no paraíso. Há muitas
limitações para criar um filho… No início, não tinha luz elétrica,
telefone, não tinham 90% das condições que temos hoje.
Qual a mensagem que vocês acham que estão deixando?
Neca – Gosto de me referir ao ciclo das tartarugas. A gente aprendeu com elas que é preciso ter paciência para modificar alguma coisa.
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